Pergunta: Acredita na reencarnação?
Krishnamurti: Em primeiro lugar, não sei quantos de vocês são versados nesta ideia da reencarnação, explicar-lhes-ei brevemente o que significa. Significa que para atingir a perfeição, têm que passar por uma série de vidas, recolhendo cada vez mais experiência, cada vez mais conhecimento, até chegarem a essa realidade, a essa perfeição. Sucinta e grosseiramente, sem entrar nas suas subtilezas, é isso a reencarnação: que vocês como o “eu”, a entidade, o ego, tomem uma série de formas, vida após vida, até que sejam perfeitos.
Agora não vou responder se acredito nela ou não, uma vez que quero demonstrar que a reencarnação é irrelevante. Não rejeitem imediatamente o que digo. O que é o ego? O que é esta consciência a que chamamos o “eu”? Dir-lhes-ei o que é, e por favor considerem-no; não o rejeitem. Vocês estão aqui para compreender o que estou a dizer, não para criar barreiras entre vocês e eu pela vossa crença. O que é o “eu”, esse ponto focal a que chamamos o “eu”, essa consciência da qual a mente se torna continuamente consciente? Isto é, quando é que estão conscientes do “eu”? Quando estão conscientes de vocês próprios? Só quando estão frustrados, quando estão impedidos, quando há uma resistência; caso contrário, são extremamente inconscientes do vosso pequeno ego como “eu”. Não é assim? Estão realmente conscientes de vocês próprios quando há um conflito. Portanto, como nós não vivemos senão em conflito, estamos conscientes dele a maior parte do tempo; e, por isso, existe essa consciência, essa ideia, que nasce do “eu”. O “eu” nesse conflito não é nada mais que a consciência de si como uma forma com um nome, com determinados preconceitos, com determinadas idiossincrasias, tendências, faculdades, ânsias, frustrações; e isto, pensam vocês, deve continuar e crescer e atingir a perfeição. Como pode o conflito atingir a perfeição? Como pode essa consciência limitada atingir a perfeição? Pode expandir-se, pode crescer, mas não será a perfeição, por maior que seja, com tudo incluído, porque os seus alicerces são o conflito, os desentendimentos, os obstáculos. Portanto dizem para vocês próprios, “Tenho que viver como uma entidade para além da morte, por isso tenho que voltar a esta vida até que atinja a perfeição.”
Ora então, dirão, “Se eliminarmos esta ideia do “eu”, qual é o ponto focal na vida?” Espero que estejam a acompanhar isto. Vocês dizem, “Eliminem, libertem a mente desta consciência de mim como um “eu”, e depois o que resta?” O que permanece quando são extremamente felizes, criativos? Permanece a felicidade. Quando estão realmente felizes, ou quando estão muito apaixonados, não há nenhum”eu”. Há esse tremendo sentimento de amor, ou aquele êxtase. Afirmo que isto é o real. Todo o resto é falso.
Portanto vamos descobrir o que cria estes conflitos, estes obstáculos, este atrito contínuo, descubramos se é artificial ou real. Se for real, se este atrito estiver destinado a ser o próprio processo da vida, então a consciência do “eu” tem que ser real. Ora, eu afirmo que este atrito é uma coisa falsa, que não pode existir numa humanidade onde há um planejamento bem organizado para as necessidades dos seres humanos, onde há verdadeiro afecto. Portanto descubramos se o “eu” é a criação falsa de um meio falso, uma sociedade falsa, ou se o “eu” é algo permanente, eterno. Para mim, esta consciência limitada não é eterna. É o resultado de um meio falso de crenças falsas. Se estivessem a fazer o que realmente quisessem fazer na vida, não sendo forçados a fazer um determinado trabalho que detestam, se estivessem a seguir a vossa verdadeira vocação, realizando-se na vossa verdadeira vocação, então o trabalho deixaria de ser atrito. Para um pintor, um poeta, um escritor, um engenheiro, que realmente gosta do seu trabalho, a vida não é um fardo.
Mas o vosso trabalho não é a vossa vocação. O meio e as condições sociais estão a forçá-los a fazer um certo trabalho quer gostem dele quer não, portanto vocês criaram já um atrito. Depois, certos padrões morais, certas autoridades estabeleceram vários ideais como sendo verdadeiros, como sendo falsos, como sendo virtuosos, etc., e vocês aceitam-nos. Aceitaram esta máscara sem compreender, sem descobrir o seu correto valor, e por isso criaram atrito. Assim, gradualmente, toda a vossa mente é deformada e prevertida e está em conflito até que se tenham tornado conscientes desse “eu” e de nada mais. Portanto, começam com uma causa errada, produzida por um meio errado, e têm uma resposta errada.
Portanto quer a reencarnação exista ou não, para mim, é irrelevante. O que importa é realizar, que é perfeição. Não podem realizar num futuro. A realização não é do tempo. A realização está no presente. Portanto o que é que está a acontecer? Através do atrito, através do conflito contínuo, está a criar-se a memória, memória como o “eu” e o “meu”, que se torna possessiva. Essa memória tem muitas camadas e constutui essa consciência a que chamamos o “eu”. E eu afirmo que este “eu” é o resultado falso de um meio falso, e por isso os seus problemas, as suas soluções, têm que ser inteiramente falsos, ilusórios. Ao passo que se vocês, como indivíduos, começarem a despertar para as limitações do meio que lhes foram impostas pela sociedade, pelas religiões, pelas condições económicas, e começarem a questionar, e por isso a criar conflito, então dissiparão essa pequena consciência a que chamam o “eu”; então saberão o que é essa realização, esse viver criativo no presente.
Colocando as coisas de maneira diferente, muitos cientistas dizem que essa individualidade, essa consciência limitada, existe depois da morte. Descobriram o ectoplasma e todo o resto, e dizem que a vida existe após a morte. Terão que acompanhar isto com algum cuidado, como espero tenham acompanhado a outra parte; senão, não a compreenderão. A individualidade, esta consciência, esta auto-consciência limitada, é um fato na vida. É um fato na vossa vida, não é? É um fato, mas não tem realidade. Estão constantemente auto-conscientes, e isso é um fato, mas conforme lhes demonstrei, não tem realidade. É apenas o hábito de séculos de um meio falso que fez um fato de algo que não é real. E embora esse fato possa existir, e existe, enquanto isso continuar não pode haver realização. E afirmo que a realização da perfeição não está na acumulação de virtudes, não está na postergação, mas sim na completa harmonia de viver no presente. Senhores, suponham que agora têm fome e que eu lhes prometo comida na próxima semana, que valor tem isto? Ou se perderam alguém que amam muito, mesmo embora lhes possam dizer ou possam saber como sendo um fato que ele vive no outro lado, e daí? O que importa, e o que na realidade acontece, é que há esse vazio, essa solidão no vosso coração e na vossa mente, esse imenso vácuo; e pensam que podem afastar-se disso, fugir disso, com o conhecimento de que o vosso irmão, ou a vossa mulher, ou o vosso marido, continua a viver. Continua a haver morte nessa consciência; continua a haver limitação nessa consciência; continua a haver um vazio nessa consciência, uma contínua dor de sofrimento. Ao passo que se libertarem a mente dessa consciência do “eu” descobrindo os valores correctos do meio que ninguém lhes pode dizer, então conhecerão por vocês próprios essa realização que é a verdade, que é Deus, ou qualquer outro nome que gostem de lhe dar. Mas através do desenvolvimento dessa auto-consciência limitada, que é o resultado falso de uma causa falsa, não descobrirão o que é a verdade, ou o que é Deus, o que é a felicidade, o que é a perfeição; porque nessa auto-consciência tem que haver conflito contínuo, esforço contínuo, sofrimento contínuo.
(trecho retirado de uma palestra em 1934 - Nova Zelândia)
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