I. K. Taimni
(Destacado e erudito teósofo hindu, doutor em Química pela Universidade de Londres, foi professor de pós-graduação e pesquisador em Química na Universidade de Allahabad. Versado na filosofia indiana, na prática da Yoga e nos princípios da Teosofia.)
(Extraído do livro Estúdios sobre la Psicologia de la Yoga, de I.K. Taimni, editado pela Federación Teosófica Interamericana, Buenos Aires, 1982).
Tradução: Cláudia Bozza
O homem, em sua mais íntima natureza divina, é essencialmente Uno com a Realidade sustentadora do Universo e faz parte dela. Trataremos aqui da relação entre a Vontade Divina e a vontade humana. Posto que o homem é essencialmente divino, sua vontade é um fator importante no drama universal que está se desenvolvendo. É certo que o exercício de sua vontade está limitado pelo seu grau de evolução, mas sua vontade afeta em maior ou menor medida a corrente de sucessos vinculados com a vida humana.
Ainda que os seres humanos não intervenham na elaboração do grandioso drama que está sendo representado em escala universal, parece que desempenham algum papel na determinação do curso dos sucessos relacionados com a evolução humana. O papel que desempenham por meio do exercício do seu livre-arbítrio, em sua limitada esfera, parece insignificante em comparação com a grandiosidade do Universo. Isto se deve ao fato de que olhamos o homem como um simples animal, com mente subdesenvolvida, e não como um ser divino que possui ilimitadas potencialidades.
O curso do desenvolvimento do Universo está determinado pela interação da Vontade Divina com as vontades das Mônadas individuais associadas a um sistema em evolução. Talvez seja mais correto dizer que é o resultado desta interação. Nas primeiras etapas de evolução as Mônadas apenas são capazes de exercer uma influência insignificante neste drama universal, mas nas etapas mais adiantadas sua influência é enorme. De fato, à medida que ascendemos na escala da evolução e se faz mais perfeita a fusão da consciência, tanto mais difícil é localizar a linha divisória entre a Vontade Divina e a vontade monádica. Será tão correto dizer que a Vontade Divina se expressa sem impedimentos por meio das Mônadas, como dizer que a vontade das Mônadas se tornou livre e autodeterminada. Isto é inevitável porque as Mônadas derivam da diferenciação dessa Realidade Única a que chamamos o Absoluto, e, portanto não pode haver diferença essencial entre as duas vontades.
Se há livre-arbítrio no indivíduo e no curso da evolução humana, coletiva e individual, é devido á interação da Vontade Divina com a vontade individual. Mas, em que lei se fundamenta esta interação? É evidente que nas etapas iniciais a lei que governa a evolução humana, permitindo que o indivíduo exerça seu livre-arbítrio, é a lei do Karma em seu aspecto mais amplo. O homem é um ser espiritual, e um ser espiritual pode desenvolver suas potencialidades divinas não pela imposição de um código de conduta exterior, mas aprendendo a fazer o que é justo e estando de acordo com a Vontade Divina por livre escolha, porque vê que isso promove o bem de todos, inclusive dele mesmo. O individuo, ao contemplar a própria natureza do Universo como uma expressão da Ideação Divina apoiada na Vontade Divina, deduz que a meta suprema da evolução e o despertar de sua natureza espiritual dependem de que ele viva e atue em perfeita harmonia com a Vontade Divina.Esta dedução o leva a corresponder-se com o Plano Divino, de maneira harmoniosa e perfeita, para cumprir bem seu próprio destino.
Aqueles que entenderam bem a doutrina do Karma sabem que o homem aprende a agir bem, não por compulsão externa, mas por decisão interna. Quando pratica o mal tem experiências dolorosas que relaciona com o mal feito. Quando faz algo de bom recebe a recompensa em forma de experiências gratificantes e felizes. Assim, associa naturalmente o que é bom com o prazer e a felicidade, e o que é mau, com a dor e a infelicidade e, de maneira lenta, mas incontidamente, evita fazer o mal praticando sempre o bem, ainda que isto lhe cause dificuldades temporais. É certo que pode tomar-lhe centenas de vidas aprender a levar uma existência justa e ter fé cega na retidão; mas é tal a natureza desta Lei que terá de assimilar esta lição cedo ou tarde. E somente quando a tiver aprendido em plenitude e estiver firmemente estabelecido na retidão, estará preparado para embarcar na viagem da própria descoberta. A retidão é a base indispensável da vida espiritual.
Isto nos leva à pergunta: "Como determinar o que é ação justa dentro do jogo das circunstâncias, ação que esteja em harmonia com a Vontade Divina ou Rta?" O homem ignora, no início de sua evolução, que existe uma Lei Divina e que só o viver em perfeita harmonia com essa Lei é que pode assegurar-lhe plenitude e verdadeira felicidade. Assim, vive de acordo com os ditames de seus desejos, resignado a colher os frutos doces e amargos que o Karma possa trazer como resultado. Como a má ação lhe acarreta dor e a boa, prazer, vai aprendendo a evitar a má ação e a evitar as tendências que o levam a fazer o mal. Deste modo, sua mente vai se libertando da carga de más tendências, o que aumenta sua cota de felicidade e permite, além disso, que a luz de Buddhi (intuição) se infiltre gradualmente em sua mente. Como fruto deste despertar de Viveka (discernimento) ele começa a perceber a natureza ilusória da vida nos planos inferiores e a futilidade em continuar aliado a interesses mundanos, de poder ou prazer temporais. Começa a intuir que até os prazeres e gozos da existência post mortem serão temporais e ilusórios, e o manterão atado à roda de nascimentos e mortes com todas as suas limitações, ilusões e misérias.
Gradualmente desperta em sua mente a compreensão de que existe um estado no campo da Realidade, acima do prazer e da dor. E assim nasce em seu coração o ideal de alcançar aquela consciência espiritual pela qual toma conhecimento de sua natureza divina, que está além das limitações e ilusões da vida inferior.
É nesse momento que deve encarar o problema de saber o que é justo e o que está de acordo com a Vontade Divina. Já tem plena fé na necessidade e na eficácia da retidão; já está determinado a levar uma vida justa; mas ainda experimenta constante confusão entre o bem e o mal, e não sabe com certeza o que fazer em certas circunstâncias. Para este homem, uma vida justa não é a vida religiosa comum, que consiste em professar a fé em certos dogmas, mas sim a adoção de uma atitude completamente impessoal, e uma conduta que esteja em perfeita harmonia com a Vontade Divina a todo o momento. Elevou-se acima do campo da moral vigente; já não está seguindo um rígido código externo de conduta, mas obedece a lei de seu próprio ser baseado em seu Dharma.
Esse tipo de ação, onde estão eliminados completamente o elemento pessoal e as preferências pessoais, é conhecido como Niskâma-Karma, que significa ação que se executa sem nenhum desejo pessoal senão o de cumprir o Plano Divino e de fazer o que for necessário, de acordo com a sua individualidade e as capacidades que possui. Pois no Cosmos nada ocorre por casualidade, e se nos encontramos em certas circunstâncias não é só porque temos que colher nosso Karma, mas também porque temos um Dharma, ou uma função a cumprir nessas tais circunstâncias. Essa função pode ser importante ou não, significativa ou não, do ponto de vista externo; mas existe, e impõe ao individuo uma obrigatoriedade em cumpri-la. Ele pode escolher não cumpri-la ou faze-lo inadequadamente, sendo que isto acarretará desvantagens e novas complicações para si mesmo e para outros.
Não podemos intervir no cumprimento do Plano Divino com nossa ignorância, assim como um peixe não pode intervir na correnteza de um rio nadando contra ela. O Plano Divino se cumprirá de qualquer forma, ainda que seja por um caminho alternativo; mas o individuo que não colabora cria complicações para si mesmo e aumenta suas dificuldades no progresso espiritual. Na realidade, a vontade do indivíduo comum é tão débil e seu livre-arbítrio é tão limitado, que sua capacidade de opor-se á Vontade Divina pode ser considerada quase nula. Entrou na corrente da vida a irá desempenhar o pequeno papel que lhe foi designado, queira ou não, apropriada ou inadequadamente.
Se todos nós estamos cumprindo o Plano Divino e, inconscientemente, estamos cumprindo a vontade de Deus, então que necessidade temos de adotar uma vida de retidão e de sermos agentes conscientes da Vontade Divina? Que vantagem tem o homem que está estabelecido no justo, sobre o homem comum que segue os ditames de seus desejos? A vantagem é enorme, mas necessitamos discernimento (Viveka) para vê-la. Enquanto o homem não estiver firmado na retidão, seu Buddhi (intuição) permanecerá nublado, seus olhos espirituais fechados, e nem sequer estará em condições de entrar para a senda do desenvolvimento espiritual que leva à realização de sua verdadeira natureza. Poderá até ser capaz de conquistar alguns dos poderes psíquicos inferiores, mas as portas do mundo da Realidade permanecerão absolutamente fechadas para ele. Nem sequer saberá que existe uma Realidade oculta por trás dos mundos inferiores nos quais sua consciência e seus poderes estão aprisionados.
É de grande importância para o individuo levar uma vida de retidão, além do que, exercerá uma grande influência sobre a vida de toda a Humanidade. Um homem justo auxilia os que o rodeiam de duas maneiras: uma, criando um centro de harmonia através do qual podem fluir forças dos planos sutis aos mundos inferiores, e assim ajudar a Humanidade, ainda que ele não esteja sempre consciente disto; outra, tornando possível, para si mesmo, o transcender das limitações e ilusões dos mundos inferiores, e assim criar, com o tempo, um outro canal de comunicação entre o mundo Real e os irreais. Todo individuo que consegue criar este canal converte-se não só num agente da Vida Divina, mas também num guia dos que aspiram desenvolver sua natureza espiritual. E quando tiver alcançado a liberação, será capaz de atender às verdadeiras necessidades espirituais da Humanidade, ainda que passe desapercebido pelo mundo externo.
Freqüentemente confundimos a espiritualidade verdadeira com a vida religiosa formal, e pensamos que seguindo as formas externas da religião e um código de ética artificial estamos levando uma vida espiritual. Mas aqueles que galgam o discernimento podem ver facilmente a vasta lacuna que separa as duas coisas, e não se deixam enganar com o palavreado e a roupagem imponente da religião com que a ortodoxia encobre sua pobreza de espírito.
Tornando à pergunta do que vem a ser a reta ação sob todas as circunstâncias, a resposta é: fazer sempre o correto, no momento correto, do modo correto e por razões corretas, até onde saibamos. Pode ser que, apesar de todos os nossos esforços, não consigamos fazer sempre o correto, mas se houver a motivação e a determinação necessária, gradualmente a presença de Buddhi (intuição) nos capacitará para ver o procedimento correto, e para segui-lo sem vacilar. A habilidade para discernir e fazer o certo só pode ser adquirida fazendo, em cada circunstância, o que nos parece mais justo e observando seu resultado. Assim, se estabelece um círculo virtuoso, até nos firmarmos na retidão; então cessa todo esforço e luta, e a vida flui fácil e naturalmente do centro de nossa consciência espiritual, no cumprimento do Plano Divino.
Mas é conveniente assinalar que somente o desejo vago e débil de fazer o correto não pode produzir semelhante transformação no caráter. Muitos aspirantes reconhecem, na teoria, a necessidade de adotar uma vida justa, e começam a fazer o correto, sempre que não interfira em seus interesses e tendências pessoais. Certamente, isto já representa uma melhora na atitude do homem comum, que nem sequer reconhece a necessidade de uma vida adequada e que atua corretamente por medo de cair nas mãos da justiça ou de criar complicações para si. Mas o indivíduo não pode estabelecer-se na retidão tendo fé no justo e fazendo o bem somente quando lhe convém ou lhe favoreça. Terá que aprender a fazer o bem em todas as circunstâncias, mesmo que possa causar-lhe perdas ou sofrimentos. Para isto, terá que estar constantemente alerta, com agudo discernimento e resolvido, serena e inflexivelmente, a fazer o correto em todas as ocasiões. Isto, provavelmente, implicará em dificuldades e angústias, porque tão logo decidimos viver com retidão, começam a surgir, como que a nos pôr à prova, todo tipo de tentações e obstáculos. Temos que suportar estas provações sem ceder, se realmente somos sérios. Somente parecerão assustadoras e dolorosas quando houver debilidade interna e tendência a vacilar, sinais de que o discernimento ainda está parcialmente nublado. O homem verdadeiramente justo entrega até a própria vida, se necessário, sem agitação ou pesar, como o testemunham mártires, santos e grandes homens.
O que foi dito mostra ao estudante a relação entre Rta e o Dharma individual, cujas idéias fundamentais podem ser resumidas assim: Rta é a Grande Lei sustentadora do Universo que se desenvolve no tempo e no espaço. A forma Real e espiritual deste Universo existe na Mente Divina, e a forma irreal e temporal que temos segue e aproxima-se, como uma sombra, da forma Real e espiritual. Neste Universo em evolução, que se projeta a partir da Mente Divina, estão imersas incontáveis Mônadas, em diversas etapas de desenvolvimento. Cada uma dessas Mônadas é parte integrante da Realidade, e tem sua própria unicidade e papel individual no longuíssimo drama que se desenvolve no cenário do Universo. Tem uma personalidade e uma individualidade que opera nos mundos inferiores, a fim de desenvolver as potências divinas que trás em seu interior, e mostrar sua singularidade individual. A personalidade e a individualidade, por um lado, são meras sombras da Mônada e, por outro, são instrumentos para o seu desenvolvimento. Este aperfeiçoamento não é casual; está dirigido, num sentido, pela unicidade individual da Mônada, e noutro, pelo lugar que ocupa no Plano Divino. Estas duas forças que existem ocultas em sua natureza eterna guiam o processo de evolução e determinam em grande parte o modelo geral de suas vidas nos planos inferiores. Representam a Vontade Divina e o Plano Divino no tocante à Mônada.
Nosso Dharma individual, no sentido mais amplo do termo, consiste em nos ajustar a este modelo e seguir a senda marcada para cada um de nós. Mas no decorrer deste desenvolvimento, desviamo-nos devido à nossa ignorância e aos nossos anseios egoístas, convertendo assim o Karma individual e coletivo num outro fator importante que deve ser considerado. Portanto, o Dharma básico de cada individuo fica condicionado sempre pelas necessidades e circunstâncias de cada encarnação, e pelo ambiente onde age, em razão do Karma vigente que deve exaurir em cada encarnação particular.
Já dissemos que a Vontade Divina não atua de uma maneira determinante na evolução, mas deixa em liberdade as Mônadas para agirem e aprenderem, ainda que com os seus próprios erros. Portanto, é óbvio que o Dharma de um individuo, dentro de certas circunstâncias, é o resultado da interação de diferentes tipos de forças que atuam sobre ele. Daí não existir um conjunto de regras rígidas a cumprir mecanicamente para levar uma vida de retidão. O único método para conhecer nosso Dharma, e determinar a linha de ação que temos que seguir nas diferentes situações e circunstâncias é manter imaculada a luz interna da intuição (Buddhi). Mas não devemos confundir esta luz com o que nos pede a mente embotada pelos desejos e preconceitos religiosos, que a toma equivocadamente como a voz de Deus, e que os políticos inescrupulosos qualificam de "chamamentos do dever". O conhecimento do nosso verdadeiro Dharma vem pela percepção espiritual, é como uma clara compreensão e não um mero pensar. Resulta da purificação da mente de toda sorte de desejos inferiores, e da libertação do servilismo ao eu inferior.
O estudante verá que esta retidão não difere muito de Niskâma-Karma. Em ambos os casos, o reto atuar é a base de todos os aspectos da vida. Niskâma-Karma também significa a ação livre de motivação e desejos pessoais; e o que a orienta é o Divino em nós, e não a personalidade. A personalidade cede à direção interna, e até se oferece prazerosa e inteligentemente para servir o Eu superior... e esta vida de retidão está aberta a todos!
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